Luz

Nosso cérebro é capaz de interpretar propriedades quânticas da luz?

15 de setembro de 2023

Ado Jorio de Vasconcelos é professor do Departamento de Física da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), membro da Sociedade Brasileira de Física, da Academia Brasileira de Ciências, da Ordem Nacional do Mérito Científico e da The World Academy of Sciences. Seu trabalho compreende pesquisa e desenvolvimento de instrumentação científica em óptica para o estudo de nanoestruturas com aplicações em ciência dos materiais e biomedicina.

Nesta entrevista, Ado Jorio conta sobre seus estudos com um sistema de análise da retina para procurar sinais da doença de Alzheimer e com espectroscopia óptica e espalhamento Raman, que o levaram ao projeto Visão Quântica. Ele descreve ainda a metodologia e a infraestrutura desenvolvidas no projeto, que aliam física e neurociência para estudar se e como nosso sistema visual percebe fenômenos quânticos – e os próximos passos a serem dados pelo grupo de pesquisadores. E fala sobre os potenciais da pesquisa, que pode levar, fundamentalmente, a novas percepções sobre o funcionamento do nosso cérebro. Para Ado, ciência pioneira se relaciona necessariamente à curiosidade, grande força motora da humanidade.

Ciência Pioneira: Você pode contar um pouco sobre o seu trabalho com óptica quântica, em particular, com espectroscopia Raman?

Ado Jorio: A óptica é uma área muito ampla em que se usa a luz para estudar diversos fenômenos que podem estar relacionados à sua interação com matéria ou com a própria luz. Quando falamos de óptica quântica, estamos preocupados com as propriedades quânticas da luz. O trabalho que a gente tem feito segue na direção da interação da luz com uma matéria: o fóton, que é a quantidade indivisível de energia da luz, entra em um material e troca energia com esse meio, gerando outro fóton de energia maior ou menor. Isso é o que a gente chama de espalhamento Raman, que é o espalhamento inelástico de luz.

E o que a gente está estudando, que é um fenômeno muito interessante, acontece quando um fóton transfere energia para o meio e essa energia é então absorvida por outro fóton, gerando dois outros fótons que têm uma propriedade chamada correlação quântica. Assim, pesquisamos as propriedades quânticas da luz formada, na sua essência, por dois fótons que estão correlacionados quanticamente pela interação que aconteceu dentro de um meio – e essa interação tem o nome de espectroscopia Raman.

De que formas o seu trabalho nessa área o levou para o projeto Visão Quântica?

O projeto Visão Quântica, de forma ampla, tem a seguinte questão: o nosso cérebro é capaz de identificar propriedades quânticas da luz? Se a luz carrega informações quânticas diversas, o grande processador que é o nosso cérebro é capaz de detectar e interpretar essas propriedades? De forma mais específica, a nossa contribuição ao projeto tem a ver com o processo de espalhamento Raman.

De modo geral, na luz do dia, nossos olhos captam uma enormidade de fótons. Então, a primeira coisa que precisamos nos perguntar é: o nosso sistema de visão é capaz de interpretar que você detectou um único fóton? A segunda pergunta é: se eu disparar dois fótons, um em cada olho, e esses fótons tiverem uma informação de correlação quântica, o meu cérebro vai entender isso de alguma forma?

Em outras palavras: se enviarmos dois fótons que não são correlacionados e medirmos seus efeitos no cérebro, e depois enviarmos dois fótons que são quanticamente correlacionados, o cérebro detecta uma diferença e interpreta a correlação quântica? É essa pergunta que estamos tentando responder no Visão Quântica.

E quais são as suas expectativas para o Visão Quântica? 

As expectativas são muito grandes. Porque, apesar de ser uma pergunta que é pioneira e muito fundamental, ela engloba diversos aspectos importantes: desde ajudar na compreensão do funcionamento do cérebro, de saber se o cérebro interpreta propriedades quânticas; até a possível necessidade de termos que desenvolver novos aparelhos capazes, por exemplo, de direcionar o fóton para um detector específico da nossa retina e, então, ser capaz de controlar isso do ponto de vista instrumental.

Assim, a pergunta e o trabalho científico vão desde o desenvolvimento de uma instrumentação que não existe, para fazer o que a gente precisa fazer, até as consequências da resposta da pergunta que propomos. 

Uma de suas recentes linhas de pesquisa envolveu o desenvolvimento de um sistema de análise da retina para procurar sinais da doença de Alzheimer. Como isso funciona? Você pode contar mais um pouco sobre essa pesquisa?

De novo, ela vem de uma pergunta muito aberta: eu sou capaz de medir o sinal de espectroscopia óptica do fundo do meu olho, da minha retina? Quando o sol ilumina uma mesa, eu olho para ela e entendo que é uma mesa; estou fazendo, de certa forma, uma interpretação espectroscópica. Mas é possível fazer isso de outra forma: jogar luz e captar o sinal de dentro da retina de uma pessoa? Se a resposta é positiva, é possível identificar então, na retina, arranjos moleculares específicos? Da mesma forma que eu sei que a mesa é de madeira, porque interpreto cores e outros tipos de informações, se eu puder fazer espectroscopia dentro do meu olho, poderei saber quais são os arranjos moleculares e identificar propriedades ali do meio.

A doença de Alzheimer afeta majoritariamente nosso cérebro, e o que acontece no cérebro acontece também no nervo ótico, que é uma extensão do tecido cerebral. Consequentemente, alterações provocadas por Alzheimer podem ser identificadas na retina. Doenças diversas geram modificações no organismo que produzem marcadores moleculares e existe um marcador específico relacionado ao desenvolvimento de Alzheimer: um peptídeo chamado de beta-amiloide. Assim, se for possível identificar a presença de beta-amiloide no fundo do meu olho, eu identificarei que essa proteína está sendo acumulada no meu tecido cerebral, o que está relacionado ao desenvolvimento do Alzheimer.

Vocês pretendem passar do estágio de laboratório para pesquisas com pacientes?

Com certeza. Agora, já desenvolvemos toda a metodologia instrumental para gerar os fótons e dispará-los em um tecido molecular que a gente sabe que desenvolve o Alzheimer; e isso nos mostrou como identificar o marcador molecular. Mas tudo isso foi feito em modelos animais ou em tecido dissecado de animal. O próximo passo agora é trabalhar com todas as questões de segurança relacionadas a jogar um laser no olho de uma pessoa sem interferir na funcionalidade do olho. Depois, começar a fazer testes em humanos.

O que vocês imaginam encontrar? Quais os potenciais desse estudo?

Ainda não existe nenhuma droga ou nenhum tratamento que reverta ou cure um paciente de Alzheimer. E um dos grandes obstáculos para isso é a nossa incapacidade de detectar a doença no seu nascedouro e de conhecer todo o seu desenvolvimento. Quando uma pessoa é diagnosticada com Alzheimer, em geral, ela já tem uma evolução da doença que pode chegar a vinte anos, a ponto de começar a exibir sintomas clínicos, como falta de memória. Tratar uma doença em estágio tão avançado é muito difícil.

Se a gente conseguir diagnosticar precocemente, acompanhar a evolução do quadro e, neste acompanhamento, tentar intervenções diversas e estudar o seu efeito, isso pode levar a uma cura para o Alzheimer. E por trás da cura está exatamente o conhecimento científico de como a doença se desenvolve e o que você deve fazer para que ela pare de evoluir.

E no caso do Visão Quântica?

Quando a gente está falando de uma doença, o resultado é óbvio: é o desenvolvimento do conhecimento para acabar com a doença. Mas no Visão Quântica, nossa pergunta chega a ser filosófica: O nosso cérebro é capaz de compreender propriedades quânticas da luz? Vamos dizer que a resposta é: sim, que ele é. Como? O que permite que nosso cérebro diferencie dois fótons correlacionados quanticamente de dois fótons não correlacionados quanticamente?

Com essas perguntas, vamos fundamentalmente estudar e aprender sobre o funcionamento do nosso cérebro, que, ainda hoje, é uma grande caixa preta, por mais que a gente tenha acumulado muito conhecimento sobre o assunto. 

Quais os desafios ao produzir uma pesquisa tão à ponta?

Os desafios são vários. Se eu quero gerar uma luz quântica, preciso de um laser que comprime muitos fótons em um espaço de tempo curtíssimo – para então gerar poucos pares de fótons correlacionados. Veja que já é um grande desafio a geração e a compreensão da própria fonte de informação quântica: conseguir produzir a luz quântica do nosso interesse, para entender as propriedades dessa luz. Depois, vem toda a condução desses fótons, direcionados para os olhos de uma pessoa. E precisamos ter clareza de quantos fótons estamos jogando no olho, em que taxa de repetição. E, para isso, é necessário desenvolver a forma da pessoa ser exposta a esses fótons.

Passada essa fase, de desafios técnicos, entramos então no momento de aprender e demonstrar como a pessoa pode fazer para identificar verdadeiramente um fóton. Há ainda um último desafio: entender se a pessoa está sendo capaz de diferenciar se uma propriedade é ou não quântica. Tudo isso é muito novo! Vou dar um passo atrás: quando uma criança recém-nascida vê uma cadeira, ela sabe que está vendo uma cadeira? Provavelmente não, ela vai aprender mais tarde que aquilo é uma cadeira. Então ainda tem o desafio de que, para a gente saber se o nosso cérebro é capaz de diferenciar uma coisa ou não, talvez o grande desafio não seja nem do cérebro estar fazendo o trabalho, mas de aprendermos a reconhecê-lo. São perguntas pioneiras, em aberto, que precisaremos entender e aprender.

É nesse momento que entramos então em uma relação com outras áreas da ciência?

Com certeza: nesse momento você entra para a neurociência, que tem toda uma parte neurológica de interpretação e toda uma metodologia, que não é uma metodologia que a gente, como físico, aprende. Como físico, meus métodos incluem mexer nos detectores, processadores e lasers, entre outros equipamentos. Mas quando você vai abordar a interpretação de uma pessoa, já é um conhecimento que a gente não detém e, por isso, precisamos conversar com pesquisadores que trabalham com psicofísica e com diversas questões que estão relacionadas com a capacidade do ser humano de dizer se viu ou não um fóton, por exemplo. Todas essas questões são importantes se você está medindo determinado fenômeno, porque recai na interpretação da pessoa que está ali fazendo o experimento.

É um passo que ainda vai ser dado, certo? 

O exame específico com pessoas ainda não foi feito. Mas, assim como no estudo sobre Alzheimer, já trabalhamos em todo o conhecimento para estarmos hoje aptos a testar em pessoas, no caso do Visão Quântica, de fótons que carregam correlação quântica, a gente já desenvolveu todo o conhecimento para começar a fazer testes com pessoas. Inclusive, já desenvolvemos parte da infraestrutura para levar esses fótons para o olho de uma pessoa. Embora, como eu falei, esse desenvolvimento tenha um caráter muito amplo: eu posso jogar luz no fundo do olho de uma pessoa de forma controlada e obter informações diversas desta prática – e então eu posso aplicar isso à luz quântica, ao diagnóstico precoce de Alzheimer e posso aplicar à nossa imaginação, que é o limite.

É importante se colocar nesse lugar, do desconhecido, do risco, para provocar saltos científicos?

Eu diria que a curiosidade é a grande força motora para a ciência. É a vontade de entender o funcionamento do que você desconhece, é a vontade de saber por que aquilo é assim. Isso não é uma prerrogativa apenas de um físico ou de um neurologista: uma criança tem essa curiosidade, um jornalista tem essa curiosidade. É o que nos move! E o que é específico do cientista é que essa é também a nossa função: responder às perguntas que todos nós fazemos.

Veja também o infográfico “Visão Quântica em Laboratório“, para saber como físicos produzem e direcionam fótons com correlação quântica para os olhos de uma pessoa; e como neurocientistas avaliam a percepção visual sobre a luz.

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