Inseto pousado em folha.

Mecânica quântica e as origens da vida

4 de agosto de 2023

Professor na Universidade do Estado do Arizona, Paul Davies é um físico teórico, cosmólogo e astrobiólogo que pesquisa sobre a origem do universo e da vida.  

Durante o evento Quantum Bio BR Summit, organizado pela Ciência Pioneira em parceria com a Universidade da Califórnia (UCLA) e o Instituto D’Or (IDOR), ele apresentou uma palestra inspirada no livro “O que é vida?”, escrito em 1944 pelo físico Erwin Schrödinger.

Nesta entrevista, Davies fala sobre as origens da vida, um tópico de pesquisa fascinante que depende de um novo e empolgante campo da ciência que conecta química, física, biologia e ciência da informação. Ele fala sobre como a biologia quântica pode desempenhar um importante papel na explicação do comportamento dos sistemas vivos.

Ciência Pioneira: “O que é vida?” é uma grande pergunta. Como você tenta respondê-la?

Paul Davies: Eu sou treinado como um físico e quando eu olho para sistemas vivos e para a matéria viva, parece uma espécie de mágica, como algo extraordinário, bem diferente de qualquer outra coisa com que os físicos se deparam. E a razão pela qual isso é fascinante é, claro, porque quando se tem duas ciências diferentes que não se encontram propriamente no meio, se sugere que devem haver algumas novas leis ou novos princípios atuando. Existem duas ciências: uma é a física e a outra é a biologia, e elas não se chocam, porém também não se misturam.

Isso é algo que um dos fundadores da física moderna também pensou: em 1943, na Irlanda, Schrodinger fez uma palestra chamada “O que é a vida”, que acabou se transformando em um livro muito influente, publicado no ano seguinte. Como físico, Schrödinger era igual a mim, fascinado pela natureza da vida, porém ele acreditava que a física se tornaria capaz de entendê-la de alguma forma. Bom, várias décadas se passaram e ainda estamos completamente enfeitiçados pelos princípios fundamentais que fazem a vida pulsar.

Mas não me deixem confundi-los, se olharmos para qualquer processo que ocorre em um organismo vivo, como o DNA e a maneira que é replicado, em nível molecular, tudo parece obedecer às leis da física que conhecemos. Porém, quando juntamos tudo e observamos o sistema como um todo – a forma como se comporta, como parece possuir propósitos e objetivos e se envolver em comportamentos muito complexos – estas são coisas muito difíceis para um físico descrever. Ainda nem temos a estrutura conceitual correta para afirmarmos que este é o caminho a ser seguido.

Então, estamos travados! No nível de átomos e moléculas é física conhecida; no nível de organismos, parece mágica.

Suspeito que, em algum lugar entre a física conhecida e a mágica, esteja a nova física, mas nós ainda não sabemos o que ela é, e este é um desafio para as gerações futuras de cientistas tentarem entender: identificar se algo em certo nível de complexidade está emergindo em organismos vivos que possa explicar as notáveis propriedades da vida. Não estou satisfeito que a vida seja explicada pela física conhecida – e devemos manter a mente aberta para isso.

No seu livro “Demon in the Machine”, você afirma que a vida é igual a matéria mais informação. Qual é essa informação que diferencia os seres vivos dos de outras coisas?

Se você for a um departamento de física e perguntar “o que é vida?”, a história que você vai ouvir será em termos de moléculas, das forças entre as moléculas, das formas das moléculas e de quantidades como entropia e energia livre. Em outras palavras, é uma narrativa que as pessoas contam em termos de matéria: de objetos materiais e as forças entre eles. E está tudo bem, mas, se você for a um departamento de biologia e perguntar “o que é vida?”, ouvirá uma história diferente. Eles falarão sobre coisas como sinais e replicação – e hoje em dia, bastante sobre edição. Em outras palavras, eles falarão sobre informação.

Estamos acostumados ao fato de que existe informação no DNA e que hoje temos a tecnologia para reescrever o livro da vida: podemos editar esta informação e criar novas formas de vida. Então, biologia é na realidade sobre informação: não apenas armazenamento e replicação de informação, mas gerenciamento da informação.

Quando digo que a vida é química ou matéria mais informação, isso é como um computador, com um hardware e um software. As pessoas se preocupam com a origem da vida: como a vida surgiu da ausência de vida. E a maioria das pessoas que trabalham neste problema são químicos, que esperam ser possível misturar moléculas de alguma forma e assim criar vida em tubos de ensaio. Então, eles enxergam a questão como um problema de complexidade química. Porém, eu acredito que isso é apenas metade da história – a metade fácil, aquela que diz que se você tiver todos os ingredientes certos, eventualmente será capaz de produzir os elementos da vida. Mas, e o software? E o gerenciamento da informação? E se você pensar novamente em um computador, para mim, também parece mágica.

Porém, o que sabemos é que a explicação para esta mágica não está no fato de que o meu computador possui silicone, cobre, plástico ou qualquer outro material. Sabemos que sem estes materiais o computador não existiria. Mas, se quisermos uma explicação, um engenheiro de software nos falará sobre os códigos que tiveram que ser escritos para que o computador fosse capaz de funcionar tão bem. E é a mesma coisa com a vida. Não adianta pegar apenas o material vivo, o elemento da vida: este deve ter um sistema operacional, o software, e a entrada de dados, como um computador.

A parte difícil de entender sobre a vida é a origem deste software – como foi que apenas moléculas foram capazes de escrever o software que faz a vida acontecer? Esse é o grande mistério para mim.

E o que isto sugere é que provavelmente está faltando algo que será um tipo de nova lei, ou princípio, da física, que surge em sistemas vivos, e que explica que a forma como a matéria se comporta não depende apenas das forças no seu entorno, mas no conteúdo da informação do sistema. Agora, eu não desenvolvi todos os detalhes disso ainda, tenho apenas algumas ideias sobre isso. Muitas pessoas têm pensado sobre isso também. Mas acredito que é onde encontraremos uma nova física: de alguma maneira acoplando o hardware com o software.

É claro que computadores são desenhados por seres humanos – então existe um designer inteligente. Gostaríamos de entender como a vida veio a existir sem um designer inteligente, pois nós não queremos milagres reais, ou mágicas reais, nós queremos uma explicação científica. 

É neste espaço mágico que começamos a falar sobre biologia quântica?

Sim, exatamente. Então, quando estamos no nível molecular, as leis da física aplicáveis não são apenas as que utilizamos na engenharia do dia a dia (as leis de Newton), elas são fundamentalmente mecânica quântica (as leis de átomos e moléculas). E a dificuldade que enfrentamos é que se você seleciona um átomo individualmente em um sistema vivo, ele obedece às leis da mecânica quântica, porém, se você seleciona todo o organismo, ele não obedece. Assim, não existe uma resposta para como podemos ir do reino quântico, de nível molecular, para o reino dos gatos e dos humanos.

Mas nós devemos estar abertos para o fato de que podem haver alguns aspectos dos sistemas vivos que são fundamentalmente mecânica quântica, mesmo que eles estejam em uma escala relativamente maior. Eu não me refiro a um gato em si, mas talvez algo que envolva uma grande quantidade de moléculas, porque se elas estão organizadas de uma certa maneira pode haver efeitos quânticos não triviais. Sabemos disso, por exemplo, com o fenômeno da supercondutividade – um material que conduz eletricidade perfeitamente porque existem certas propriedades quânticas que operam em temperaturas baixas. Então nós sabemos que isto é uma possibilidade: que a mecânica quântica não se quebra em uma escala de tamanho físico. Parece que existem alguns fenômenos na biologia onde efeitos quânticos ocorrem mesmo em escalas de comprimento, que são grandes para os padrões quânticos normais.

Mas nós não sabemos, e esta é a grande questão que me interessa: se esses fenômenos individuais são apenas algumas peculiaridades quânticas ou se a mecânica quântica é fundamental para a natureza da vida.

É claro que, de um lado, a vida é claramente mecânica quântica, porque a vida é química, e a química pode ser explicada pelas leis da mecânica quântica. Porém, quando falamos do termo biologia quântica neste cenário mais moderno, na realidade estamos nos referindo a processos como o entrelaçamento e o tunelamento, onde vemos efeitos quânticos peculiares que vão além das forças e formas moleculares. É muito cedo para afirmar se a vida é fundamentalmente mecânica quântica neste sentido ou se apenas tem pequenos pedaços onde a mecânica quântica é importante.

Como isso pode ser comprovado pelos cientistas?

A dificuldade fundamental ao tentar solucionar esta questão é que se você quiser experimentar com sistemas quânticos, geralmente você quer que eles satisfaçam dois pontos: um é que seja simples e o outro é que seja isolado. E assim, se você pegar um único átomo, por exemplo, e colocá-lo em uma armadilha magnética (é possível fazer isso, você pode encurralar átomos) e então interrogar este átomo com um laser, você poderá fazer experimentos bem precisos para testar os seus efeitos quânticos. Mas se você tiver trilhões e trilhões de átomos agrupados em um tecido vivo, à temperatura ambiente, ou temperatura corporal, existirão muitas influências perturbadoras, e isto torna muito difícil extrair os efeitos quânticos que podem estar ocorrendo.

Então, é isso que está impedindo que sejamos capazes de responder esta pergunta, é somente a clara dificuldade de lidar com sistemas microscópicos quentes e úmidos.

Se há algo de novo e excitante que pode surgir de um efeito quântico em larga escala, será no nível das interações das moléculas. E talvez nós precisemos de um novo tipo de técnica experimental que possa chegar neste regime. Você sabe, experimentos laboratoriais estão sempre melhorando então existe a esperança de que nos próximos, digamos 10 anos, muito progresso será feito nesta área. Eu penso que é particularmente excitante na interseção entre química, física, biologia, ciências da computação e ciências da informação, onde nós analisamos o nível de máquinas moleculares e grandes interações das moléculas.

Precisamos ampliar os limites da ciência para abordar as origens da vida?

Bem, acho que a história fala por si. Darwin conjecturou em meados do século XIX sobre a origem da vida: ele falou sobre o que hoje chamamos de automontagem química. Durante pelo menos 100 anos, os químicos têm experimentado diferentes processos tentando recriar os alicerces da vida, e eles tiveram um pouco de sucesso, mas ninguém realmente tentou resolver este problema de informação. E é por isso que acho que precisamos de algo novo, porque não é apenas uma questão de alguém criar um maquinário da vida e entregá-lo a outro cientista para então carregar um sistema operacional.

Muitos de meus colegas são reducionistas, o que significa que eles acham que tudo será explicado no nível molecular e que não precisamos de nenhum princípio adicional místico operando em níveis superiores. Mas isso não é ciência, é uma posição ideológica, e eu entendo isso e acho que o reducionismo funcionou muito bem na ciência. Mas quando se trata da vida não é um bom ajuste, então precisamos de algo novo.

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