Oitavo artigo da série que explora o contexto das experiências não-ordinárias no Brasil e como elas impactam nossa população. Todos os dados foram coletados e relacionados a partir de estudos feitos pelo grupo de Neurociência das Crenças e Valores do Instituto D´or de Pesquisa e Ensino.

Autora: Mirta Misailidis

Pense na última vez em que o mundo pareceu parar por um instante. Você já olhou para um céu cheio de estrelas e se sentiu, ao mesmo tempo, minúsculo e conectado a algo grandioso? Ou ouviu uma música que te causou um arrepio e silenciou todos os seus pensamentos? Esse é o sentimento de deslumbramento, ou awe.

Esse sentimento não possui uma tradução exata para o português, assim como a palavra “Saudade” em outros idiomas. Ele pode ser traduzido como deslumbramento ou maravilhamento, é o momento “uau!” — de admiração ou contemplação — diante de algo maior, desconhecido ou inexplicável.

O deslumbramento é mais do que um sentimento agradável. Mesmo sendo frequentemente comparado ao sentimento de admiração e incluindo estados relacionados como inspiração e elevação, estudos também mostram que cerca de 20% das experiências de awe podem ser tingidas de medo. Sendo assim, se a experiência do awe é tão pessoal e “difícil de descrever”, como é possível estudar cientificamente os “ingredientes” que compõem o deslumbramento e entender por que ele é tão impactante?

A PESQUISA

Para desvendar isso, o IDOR conduziu uma pesquisa em que os voluntários responderam a uma lista de fenômenos do Inventário de Experiências Não-Ordinárias – INOE, indicando com “sim” ou “não” quais experiências eles já haviam vivenciado. A pesquisa focou em decifrar a “receita” do deslumbramento e quais outros “ingredientes” estavam presentes quando o item-chave aparece.

Se um participante relatava ter sentido awe, a próxima pergunta era direcionada ao tempo em que esses fenômenos ocorreram, a fim de descobrir se alguma dessas experiências vivenciadas anteriormente pelo participante aconteceram ao mesmo tempo que o item-chave. Essa abordagem permitiu registrar não apenas os ingredientes isolados, mas como eles se combinaram para formar o elo de um instante memorável.

Ao cruzar milhares de respostas e analisar quais ingredientes apareciam ao mesmo tempo, com mais frequência, foram mapeadas quais as sensações, percepções e sentimentos que formam o ecossistema do deslumbramento. O achado mais marcante foi revelar a impressão digital do awe.

_{Figura 1}

O RESULTADO

A análise da “impressão digital” do deslumbramento revelou quais experiências formam seu núcleo. O resultado apresentado na Figura 1 mostra a frequência de experiências que foram relatadas de forma conjunta, revelando novas perspectivas sobre o que constitui o “uau!”, como:

Emoções Positivas: Amor, alegria, e prazer formam a base afetiva da experiência.

O Eu Diminuído (diminished self): A marcante sensação de que o “eu” individual se torna menor diante de algo vasto.

Imersão Profunda (Absorbed): Um estado de absorção tão completo que a percepção da passagem do tempo é alterada.

Conexão e Significado: Sentimentos de compaixão, a percepção de um sentido maior para a vida (Sentido para vida) e de unidade com o universo.

Fenômenos Perceptuais: Experiências como déjà vu, Sonho lúcido e a sensação de que certos lugares possuem um poder ou força maior (Lugar extraordinário), confirmando que o awe impacta nossa percepção da realidade.

Sentimentos de unidade com o universo e de paz profunda são companheiros constantes do awe. Mas a análise permitiu ir além dessa lista. Ao estudar como todas as experiências se relacionam, foi possível descobrir que elas se organizam em um verdadeiro ‘mapa da mente‘, identificando ‘famílias’ ou ‘constelações’ de sensações.

A principal ‘família’ que orbita o deslumbramento é de experiências transcendentais positivas, unindo paz, unidade e emoções positivas. Uma segunda família, mais ligada às percepções, agrupa alterações na percepção do tempo. Isso nos mostra que o ‘uau!’ não é apenas um sentimento, mas um evento complexo que reconfigura momentaneamente nossa percepção e nosso estado emocional.

POR QUE É IMPORTANTE CONHECER A ANATOMIA DO DESLUMBRAMENTO?

A admiração é uma resposta referente a diferentes estímulos que ainda não são bem compreendidos pelos indivíduos, podendo dar origem a estados emocionais mistos e complexos. A neurociência diz que o awe aquieta as partes do cérebro ligadas ao ego, o que nos torna mais conectados aos outros. Estudos como os do psicólogo Dacher Keltner mostram que experiências de awe estão ligadas a maior generosidade, humildade e bem-estar geral. Elas tiram o foco egocêntrico e conectam os indivíduos a algo maior que eles mesmos.

Sendo assim, estudar as emoções transcendentais, incluindo o deslumbramento, têm implicações importantes para a compreensão das funções e da estrutura da emoção em geral. Induzir a admiração — seja por meio do contato com paisagens grandiosas, obras de arte ou momentos de beleza inesperada — podem impactar profundamente nos níveis de satisfação com a vida e bem-estar. Essas atividades podem ser uma prática crucial para o momento “uau!” reacendendo a conexão com o mundo e consigo mesmo.