Desvendando as “NOEs”: Experiências de alteração do self

Desvendando as “NOEs”: Experiências de alteração do self

28 de julho de 2025

Quinto artigo da série que explora o contexto das experiências não-ordinárias no Brasil e como elas impactam nossa população. Todos os dados foram coletados e relacionados a partir de estudos feitos pelo grupo de Neurociência das Crenças e Valores do Instituto D´or de Pesquisa e Ensino.

Autor Pedro Fortes

Durante o sono ou em estados de relaxamento profundo, algumas pessoas têm a sensação de flutuar fora do corpo (chamada de “experiência extracorpórea” ou OBE), como se pudessem observar a si mesmas de um ponto de vista externo, comumente visto de cima. Outras vezes, em situações de estresse ou durante práticas espirituais, podem sentir que se fundem com outra pessoa, um objeto ou até com o universo, como em experiências místicas intensas. De maneira semelhante, existem as experiências de diminuição ou dissolução do self, em que há a disrupção parcial ou total da noção do “Eu” e da identidade narrativa. A esses fenômenos peculiares damos o nome de experiências de alteração do self e da identidade, caracterizadas pela alteração na percepção das fronteiras usuais entre nós mesmos e o mundo externo.

Como discutimos na semana passada, o Inventário de Experiências Não-Ordinárias (INOE) representa uma alternativa metodológica importante para estudar esse tipo de fenômeno, uma vez que oferece a possibilidade de mensurar experiências não-ordinárias a partir de suas descrições subjetivas, sem a interferência de interpretações teóricas e culturais pré-definidas. A versão brasileira do inventário, adaptada pelo grupo de Neurociências dos Valores e Crenças do IDOR, conta com 37 itens organizados em diferentes categorias conceituais. A seguir, vamos olhar especificamente para alguns dados de prevalência sobre a categoria “alterações do self”, que inclui: absorção, diminuição do self e experiências extracorpóreas (OBEs).

DADOS DE PREVALÊNCIA

Imagem 1. O gráfico de barras indica a frequência média entre os participantes somados dos 6 estudos para as experiências de “Absorção”, “Diminuição do self” e “OBE”.

A partir dos dados obtidos com 6 amostras distintas, foi possível estimar a prevalência média dessas experiências na população brasileira. Observou-se que, pelo menos uma vez na vida, mais de 80% dos participantes já viveram a experiência de absorção, enquanto que 27,6% já tiveram essa experiência mais de 10 vezes. Quanto à experiência de diminuição do self, 72,6% dos participantes reportaram tê-la vivido pelo menos uma vez na vida, enquanto cerca de 20% indicaram que já sentiram isso mais de 10 vezes.

Por fim, as experiências extracorpóreas figuraram como as menos frequentes do grupo, mas ainda sendo reportadas por quase um quinto dos participantes. Mais incomuns, as OBEs tendem a acontecer menos vezes na vida de quem as vivencia, e apenas 2% das pessoas reportaram ter tido a experiência mais de 10 vezes – o que não deixa de ser um número bastante expressivo quando generalizamos essas estimativas para a população brasileira. Esses números sugerem que as alterações na percepção do self são, de maneira geral, altamente prevalentes no Brasil.

IMPACTOS NA SAÚDE

Pesquisas indicam que essas experiências podem estar ligadas a alterações na atividade neurológica – por exemplo, em áreas como a junção temporoparietal – associada à percepção do corpo, do espaço e do self. Além disso, pessoas com presença acentuada de traços psicológicos como fantasia e fronteiras mentais permeáveis são predispostas a relatar mais experiências não-ordinárias do self e da identidade. Quanto aos fatores contextuais, sabe-se que situações de intenso estresse, privação sensorial, contextos ritualísticos religiosos, meditação profunda ou uso de substâncias (como ketamina) também podem desencadear essas experiências.

Embora frequentemente estudadas no contexto de fenômenos dissociativos e suas implicações diagnósticas, essas experiências podem ocorrer sem necessariamente causar sofrimento ou prejuízo funcional. Se, por um lado, algumas teorias explicam esses fenômenos como falhas na integração das sensações corporais e do senso de “Eu”, outras exploram com mais ênfase a ideia de que as experiências do self podem estar associadas a mecanismos adaptativos e desencadear processos positivos para a saúde mental. Tanto em contextos terapêuticos quanto religiosos, por exemplo, as alterações na percepção do self podem produzir sensações de autotranscendência, o fortalecimento da conexão social e da empatia, além de permitir formas alternativas de resolução de conflitos psíquicos.

Ao longo dos próximos artigos, exploraremos um pouco mais sobre diferentes grupos de experiências a partir dos estudos com o Inventário de Experiências Não-Ordinárias. Até a próxima!

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