Biologia quântica

O que a natureza pode nos ensinar sobre tecnologia quântica?

11 de agosto de 2023

Clarice Aiello é engenheira quântica brasileira, especialista em nanosensores, pesquisadora do Quantum Biology Tech Lab (QuBiT) da UCLA, membro do California NanoSystems Institute (CNSI) e líder do novo Centro de Biologia Quântica da UCLA.

Desde que finalizou seu pós-doutorado, em 2017, um universo de pesquisa se abriu para Clarice. Ela começou a estudar como aplicar seus conhecimentos com sensores quânticos em materiais orgânicos. Nesta entrevista, a pesquisadora conta sobre o campo emergente fascinante da biologia quântica e quais impactos novos conhecimentos sobre o tema podem trazer à ciência e à nossa compreensão da natureza. Ela fala também dos desafios que se impõem a uma frente disruptiva e transformadora da ciência.

Ciência Pioneira: Por que biologia quântica?

Clarice: Eu decidi estudar biologia quântica quase por acidente. Fiz meu doutorado na área de computação quântica e, durante o meu pós-doutorado, eu me dei conta de que alguns fenômenos em biologia estavam se comportando de maneira muito parecida com os sensores quânticos com os quais estava acostumada.

E a biologia quântica é uma área emergente da ciência, que existe há muitas décadas, mas que carece de experimentos rigorosos de alta tecnologia, como os dos meus estudos. Então foi uma oportunidade que se abriu de começar a tentar fazer biologia quântica de um jeito mais high tech do que normalmente se faz, porque o campo está dominado por físicos teóricos, biólogos e químicos experimentais.

A biologia quântica se situa na interface de duas áreas de conhecimento: a biologia e a física quântica. Você pode explicar o que é a física quântica e como ela se diferencia da física convencional?

A física quântica é a física que começa a aparecer quando você fala das coisas em escalas muito pequenas. Tudo no universo é feito de átomos, que são objetos quânticos por excelência, mas quando muitos objetos quânticos começam a ficar juntos, as interações descontroladas entre eles levam esse aglomerado de matéria a se comportar como um objeto clássico – que é aquele que pode ser descrito pelas leis de Newton.

Assim, a física quântica compreende uma série de regras que se aplica a alguns objetos quânticos que estão muito bem isolados e durante um tempo limitado. Apesar da gente não falar muito isso, nós vivemos em um mundo movido pela mecânica quântica: laser, ressonância magnética e toda a eletrônica normal depende de transistores – que funcionam de maneira quântica.

E há evidências, ainda não absolutamente conclusivas, de que da mesma forma que o transistor está por trás do seu computador ou smartphone, alguns fenômenos de física quântica estejam por trás de fenômenos biológicos.

Pesquisador realizando experimentos no Quantum Lab
Pesquisador realiza experimentos no Quantum Lab.

O que é spin e como se relaciona à física quântica?

No campo da química básica, em que não há controvérsia, é comprovado que algumas reações químicas dependem do spin do elétron. Spin é uma propriedade quântica que não tem análogo clássico. Quando a gente fala que o elétron tem carga negativa, isso é uma construção usada para falar que há uma propriedade que interage com o campo elétrico. Mas a propriedade que leva o elétron a interagir com o campo elétrico é o spin. Da mesma forma que a carga elétrica pode ser positiva ou negativa, o spin pode ser orientado para cima ou para baixo. Se o spin for para cima, a reação química continua por um braço, e se for para baixo, por outro. Os produtos desses dois braços são macroscopicamente diferentes, ou seja, de um lado sai produto A e do outro, produto B.

O tempo durante o qual a reação olha para o spin é muito curto, mas se durante esse tempo o spin muda, o produto gerado também muda. Assim, o campo magnético pode mudar a probabilidade de o spin estar para cima ou para baixo; e consequentemente, o campo magnético pode mudar a reação para um braço ou para o outro. Essa interação é muito breve, mas tem consequências macroscópicas. Então, em química básica, não há dúvida nenhuma de que existem reações químicas que dependem deste parâmetro quântico.

E o que indica que a mecânica quântica rege fenômenos no campo biológico?

Foram os pássaros que trouxeram isso para a conversa. Há mais de meio século, entende-se que pássaros, quando migram, seguem o campo magnético da Terra. E como eles fazem isso? Se o mesmo tipo de reação química que depende do spin estiver acontecendo dentro de um pássaro, então ele pode sentir ou interagir com o campo magnético – os pássaros estariam respondendo a produtos fisiológicos diferentes, gerados por cada braço de uma reação química que depende do spin.

Para além dos pássaros, existem evidências para respiração celular e para a regulação de fluxo iônico nas células, de forma consistente com a teoria de spin. Mas toda essa evidência é correlacional: ninguém nunca, no mesmo experimento, olhou para o spin e para as consequências em uma célula.

E a gente quer fazer um experimento que ou prove ou refute, sem ambiguidade, que é o spin está por trás dessa questão – a resposta macroscópica que se tem hoje, que existe há 50 anos, só que ninguém nunca pode comprovar que está relacionada ao spin.

Como você e seus colegas pesquisadores na UCLA procuram hoje por esse tipo de evidência?

A gente olha a biologia quântica de um ângulo muito único. Não tem ninguém com a minha formação que esteja tentando fazer experimentos de biologia quântica, e eu acho que é exatamente o que está faltando. Essa evidência correlacional vai continuar existindo, mas se a gente não der um upgrade na tecnologia, ela não vai passar para esse outro patamar. E é isso que a gente está tentando fazer: trazer a instrumentação quântica para o campo da biologia quântica.

Por exemplo, no meu doutorado eu mexi com sensores quânticos, e se você usa um objeto quântico como sensor, a sua medida melhora. Então eu construí instrumentação para controlar e estudar esses sensores quânticos.

O que eu quero agora é usar o mesmo tipo de instrumentação quântica que eu usei para estudar o sensor quântico no diamante, para estudar e controlar o sensor quântico em uma proteína.

A instrumentação é a mesma e você troca o objeto de estudo, de um material inorgânico que abriga um sensor quântico, para uma proteína que abriga um sensor quântico.

Qual instrumentação e quais condições de medição seriam ideias para esse tipo de estudo? E como isso impacta nos resultados que vocês têm encontrado?

A gente está construindo um microscópio com bobina, que produz campo magnético. Mas não é um microscópio convencional, que você imagina em um laboratório de biologia; é uma mesa óptica, com vários espelhos e cheio de eletrônica. É imprescindível ter essa virada para a instrumentação quântica high tech. Porque sem ela, vamos continuar no ponto dos últimos 50 anos: evidência correlacional, que é importante, mas que não resolve o debate.

O que poderia acelerar avanços no campo da biologia quântica? Quais são atualmente os fatores promotores/facilitadores, as oportunidades, e os fatores que dificultam tais avanços?

O desafio é que a turma da área biológica não tem necessariamente o background em mecânica quântica, e precisamos fazer um trabalho de educação. Entre a turma da física há muito preconceito, de quem nunca parou para olhar o que estamos de fato tentando fazer, porque há muito charlatanismo sobre quantum healing, por exemplo. Nas agências de fomento passamos por muitos obstáculos, porque a gente está no meio, entre áreas, e as pessoas que julgam propostas de um campo não sabem sobre o outro. Então a biologia quântica não está se autossustentando e não existe incentivo nenhum para pessoas jovens entrarem e ficarem no campo, o que é uma sentença de morte.

Eu acho que biologia quântica está hoje onde computação quântica estava há 30 anos: já existia muita teoria e os primeiros experimentos high tech estavam começando a ser feitos.

E, dos primeiros experimentos de computação quântica, ninguém falou: amanhã a gente vai ter um computador quântico. Demorou 30 anos.

O que precisamos agora é de um esforço para trazer biologia quântica e educação de biologia quântica para o mainstream. É um esforço concentrado que deve acontecer durante 5 a 7 anos, com financiamento adequado, para se mostrar que esse tipo de instrumentação, que hoje a gente não consegue ter, é necessária. E eu não acho que esse esforço vá acontecer pelo governo e talvez nem pelas universidades, porque isso não é ciência incremental. Vejo isso avançar por fora das agências de fomento tradicionais e com muito foco.

Como iniciativas como Ciência Pioneira poderiam ajudar no avanço da construção de conhecimentos sobre biologia quântica?

Eu acho que pelo que vemos da iniciativa privada nos EUA, fica muito clara a importância de projetos assim. Nos EUA, muita iniciativa privada vem investindo em pesquisa e ela possibilita saltos tecnológicos. E a iniciativa privada pode ajudar a fazer ciência básica no Brasil – é o que eu estou tentando fazer com minha própria pesquisa, que não vai ser financiada por vias usuais. E eu acho que diversas linhas de pesquisa estão na mesma situação: têm o potencial de serem disruptivas e não estão sendo contempladas pelas agências tradicionais de fomento.

Com a Ciência Pioneira, a gente já tem uma relação, porque o IDOR é membro fundador do nosso Centro de Biologia Quântica, que tem como objetivo todo um trabalho de construção de comunidade.

Cientificamente, o que essas pesquisas trazem de novo à biologia e à física quântica?

Para o campo da biologia, traz um outro jeito de pensar como modificar processos biológicos. Existem vários sabores da biologia quântica e a maior parte deles tem a ver com o estudo de como a matéria biológica interage com campos eletromagnéticos: com luz, campo elétrico, campo magnético. Então é mais um jeito de você agir sobre os processos biológicos – e isso é uma novidade. Eu acho que no futuro, no longo prazo, vamos ter muitas formas de atuar sobre esses graus de liberdade quântica de maneira determinística. Por exemplo, se você quiser fazer uma alteração específica na célula, poderemos aplicar determinado campo eletromagnético; se quiser fazer outro fenômeno acontecer, aplicar outro.

Outra coisa que a biologia quântica pode trazer é um entendimento de como construir uma melhor tecnologia quântica. Tudo que nasce quântico morre clássico. Quando você começa a botar um monte de objetos quânticos juntos, eles se falam de um jeito que não é controlável e, depois de um tempo curto, normalmente, você perde o grau quântico e esses objetos se tornam mais bem descritos pela mecânica clássica novamente. É o que acontece com a computação quântica: depois de minutos ou segundos, eles perdem o caráter quântico e deixam de ser úteis. E esses computadores normalmente estão em câmaras de vácuo, a temperaturas muito baixas, porque a temperatura alta ajuda no processo de perda do caráter quântico.

Então, se a natureza, em temperaturas altas, com muita umidade e interferência ambiente, está mesmo usando propriedades quânticas para funcionar, significa que a natureza tem alguma estratégia desenvolvida de como reduzir esse nível de ruído que causa a perda do caráter quântico.

Será que a gente não consegue aprender com a natureza? O que ela pode nos ensinar sobre tecnologia quântica?

Veja também o infográfico “O futuro com biologia quântica”! Nele, Clarice descreve um possível cenário futuro para a medicina, caso se comprove que processos quânticos podem influenciar sistemas biológicos.

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