gotas de água

A ousadia de ver uma ciência diferente e mais transformadora

4 de agosto de 2023

Para Jorge Moll Neto, médico neurologista e neurocientista cognitivo, cofundador do Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino e um dos idealizadores do programa Ciência Pioneira, poucas coisas são tão entusiasmantes quanto a ciência, em especial a ciência de fronteira, que detém o fantástico poder de mudar radicalmente a forma como vemos e entendemos o mundo – e potencialmente mudá-lo para melhor. Pode-se dizer que a pesquisa de fronteira é uma das grandes alavancas do progresso humano, econômico e social. Hoje, enquanto a humanidade enfrenta desafios existenciais em múltiplas frentes, a necessidade de financiamento e apoio para pesquisas de fronteira, também chamadas de ciência maverick, é maior do que nunca.

O filósofo da ciência Remco Heesen usa o termo “maverick” para se referir a cientistas que fazem pesquisas em áreas pouco ou nada exploradas, o que pode render descobertas importantes, mas que envolvem maior risco e aventura. São justamente essas características que fazem com que a ciência de fronteira aconteça fora de paradigmas vigentes e de modelos de produtividade acadêmica e de financiamento. Por isso, cientistas que se aventuram nas fronteiras da ciência precisam de ajuda.

Nesta entrevista, Jorge fala sobre cientistas maverick, os obstáculos a esse tipo de pesquisa e sobre como produzir um esforço mais sistemático e direto para fomentar necessários saltos científicos e tecnológicos.

Ciência Pioneira: Primeiro, o que é ciência de fronteira ou maverick?

Jorge Moll: A ciência de fronteira faz perguntas não ortodoxas que desafiam convicções científicas e visões de mundo enraizadas ou busca respostas que muitos acham que não podem ser encontradas com nossas ferramentas e tecnologias atuais. Em quase todos os campos, a ciência de fronteira é a exceção, não a norma, mas detém o poder de transformar como vemos e entendemos o mundo.

Hoje, a maior parte da ciência acadêmica é projetada para fazer um trabalho seguro e produtivo dentro dos paradigmas e sistemas existentes. Em quase todos os ambientes em que cientistas trabalham há recursos limitados e os pesquisadores são recompensados por propostas que produzirão resultados publicáveis em um cronograma previsível. Sim, essa forma de fazer ciência é importantíssima e vital para uma marcha de desenvolvimento segura e previsível. Mas não deveria ser a única, pois dificilmente leva os pesquisadores a explorar ideias pouco convencionais, a desafiar as estruturas existentes e a fazer perguntas incômodas – o que é fundamental para o progresso acelerado da ciência.

Historicamente, grandes descobertas científicas, como as de Galileu Galilei, Charles Darwin ou Marie Curie são consideradas ciência de fronteira? O que colocaria esses grandes nomes como maverick?

Esses grandes cientistas são certamente mavericks da história: observaram “anomalias” que não podiam ser explicadas pelas teorias da época; desafiaram dogmas, lançaram novos campos e exploraram territórios desconhecidos, muitas vezes colocando-se até em situações de risco de vida. Tais nomes são quase sinônimos da ideia do que significa ser um maverick. Eles questionaram a ciência estabelecida e mergulham de cabeça em desafios que pareciam intransponíveis.

Que tipos de perguntas um cientista deve fazer para se posicionar na fronteira? O que torna alguém maverick?

Não existe uma fórmula certa para ser um maverick, mas um dos fatores essenciais para se fazer ciência de fronteira é a natureza heterodoxa das questões levantadas por esses cientistas: seja sobre dados que não fazem sentido dentro dos paradigmas dominantes ou sobre ideias que poderiam levar a ciência a novos lugares. Assim, apesar de serem diversas, as perguntas que constroem a ciência de fronteira possuem fortes características que as tornam diferentes das investigações científicas convencionais.

Alguns desses caminhos são perseguir o inesperado e territórios desconhecidos, trazer um novo olhar para problemas conhecidos e desafiar hipóteses, visões de mundo e dogmas já enraizados. São perguntas que também criam convergências entre diferentes campos da ciência, tratam de problemas politicamente carregados, conectam novas descobertas a lacunas de conhecimento ou de capacidade experimental e que, geralmente, levam tempo para deixar sua marca.

Existem questões que parecem fundamentais para a compreensão da experiência humana e da própria natureza da realidade e que, no entanto, são difíceis de abordar e estudar. O que é consciência? Por que dormimos? Nosso universo conhecido é tudo o que existe?

Essas perguntas até atraem muitos teóricos, mas cientistas maverick procuram evidências e abordagens experimentais que possam levar a descobertas com potencial de revolucionar nossas visões de mundo.

Recentemente, um “Genius Grant” da Fundação MacArthur estimou que, de toda a ciência que está sendo feita na academia, talvez 2% seja de fronteira. O que isso significa para nós, como sociedade, em relação ao avanço do conhecimento, da tecnologia e da inovação produzida, hoje e no futuro?

Significa que os retornos futuros da pesquisa científica continuarão decrescentes. Há muitas evidências apontando nessa direção. Além da pesquisa e inovação sofrer desse problema que se expressa a nível mundial, o cenário brasileiro enfrenta desafios muito maiores devido aos entraves na colaboração entre academia e setor produtivo, que não só atrairia muito mais recursos para a pesquisa, como ajudaria a focar esforços em áreas novas, com grandes potenciais tanto para a pesquisa básica quanto aplicada.

É possível fazer ciência de fronteira dentro dos modelos existentes de financiamento de pesquisa? Quais desafios esse sistema impõe a cientistas que tentam explorar a fronteira do conhecimento e provocar mudanças e saltos de conhecimento?

É sim possível fazer ciência de fronteira dentro dos modelos existentes, mas o sistema de financiamento tradicional e os processos de julgamento por revisão de pares podem impor desafios para cientistas que tentam explorar a fronteira do conhecimento e potencialmente provocar mudanças substanciais.

Um dos principais desafios é que a maioria dos financiadores tendem a priorizar projetos com maior probabilidade de sucesso e retorno acadêmico a curto prazo, enquanto a ciência de fronteira é geralmente considerada mais arriscada e incerta. Os sistemas teriam que aceitar mais o fato de que uma parcela substancial dos projetos financiados não alcançarão os tão-falados “resultados esperados”. Por outro lado, poderão trazer resultados nulos e mesmo “resultados inesperados”, o que é ótimo! Além disso, a competição por recursos limitados pode ser intensa, o que dificulta a obtenção de financiamento para projetos de ciência de fronteira. Aqueles que possuem resultados preliminares e mais afinados com o “status quo” acabam sendo priorizados. 

Assim, as principais barreiras à ciência de fronteira incluem a falta de recursos financeiros, a burocratização excessiva, a falta de tolerância ao fracasso e o medo de tomar riscos.

Há ainda o risco reputacional, o receio da desaprovação dos pares ao se fazer perguntas menos ortodoxas ou menos alinhadas com “a norma” do campo específico no qual um certo cientista atua. Aliás, tanto na ciência quanto na tecnologia, diz-se que a maioria das revoluções vêm de fora de um determinado campo, de alguém que, por não pertencer a tal campo, sente-se livre para testar hipóteses e modelos divergentes do pensamento comum da área.

Como você observou isso durante a sua própria carreira científica?

Fui para a faculdade de medicina em busca de entender como o cérebro gera consciência e comportamento e para ajudar aqueles que sofrem de distúrbios desse órgão extremamente complexo e misterioso. Acabei pesquisando as bases neurais do comportamento moral e do altruísmo — questões dissidentes, especialmente naquela época. Foi apenas ao ingressar no universo da produção científica, ao experimentar em primeira mão as pressões para se adequar às visões e teorias dominantes, que percebi como é difícil perseguir algumas questões ousadas que dominam a nossa imaginação.

Muitos anos depois, fiquei surpreso com o pouco financiamento e apoio existente para pesquisadores dispostos a perseguir rigorosamente questões não convencionais e paradoxos que desafiam os paradigmas dominantes. Sou grato a meus mestres científicos, incluindo Jordan Grafman (psicólogo cognitivo, atualmente pesquisador na Northwestern University), Ricardo Gattass (neurocientista visual, UFRJ) e Ricardo de Oliveira Souza (neuropsiquiatra, pesquisador do IDOR e professor na Unirio) por me fazerem enxergar que ideias muito populares na neurociência cognitiva podem na verdade esconder uma grande ignorância sobre aspectos cruciais do funcionamento cerebral, e que ideias novas podem (e devem) ser testadas e confrontadas com dogmas vigentes. Assim deveria ser a verdadeira ciência.

Como isso pode ser melhorado usando novas políticas de incentivo ou estruturas de financiamento?

Embora as barreiras para a ciência de fronteira sejam bastante claras, a resposta sobre como superá-las não é. Pode ser difícil saber quais ações podem fazer mais diferença, como catalisar colaborações e ambientes onde a ciência de fronteira pode florescer. Além disso, é importante entender como garantir que a ciência a ser apoiada seja rigorosa e, em última análise, replicável. É preciso um conjunto mais claro de hipóteses sobre onde o apoio dos financiadores poderia ter o maior impacto. Para ajudar a responder isso, produzimos o report Maverick Science, que constrói um mapa para guiar financiadores a gerar mais impacto nesse cenário.

Novamente, sugestões para endereçar esse problema incluem a criação de programas específicos para a ciência de fronteira, aumentando a flexibilidade nos critérios de financiamento e a criação de mecanismos de apoio a pesquisa de fronteira com maior tolerância ao tempo, fazendo apostas na capacidade criativa de indivíduos ou de pequenos times de pesquisadores com foco em determinadas questões fundamentais ou aplicadas.

Há ainda diversos elementos que podem trabalhar nessa sinergia, incluindo interação entre academia com o setor filantrópico e privado, grants voltados para áreas emergentes, de alto potencial e ainda pouco exploradas, e flexibilização na hierarquia acadêmica e industrial para facilitar e apoiar pesquisadores jovens “em espírito” a desenvolverem pesquisas em temas de fronteira.

Diversas instituições já se deram conta disso e buscam soluções. Universidades como Stanford, Harvard e Columbia estão trabalhando com instituições filantrópicas para financiar programas internos projetados para dar um suporte mais rápido e ágil para projetos potencialmente maverick. São programas voltados para cientistas com ideias ousadas e pouco ortodoxas em fase inicial – e que provavelmente não teriam financiamento para serem desenvolvidas. Há outros exemplos, novos e antigos e de alto impacto, como o Bell Labs, Instituto Weizmann, Cold Spring Harbor Lab, Cavendish Lab. No Brasil, podemos citar o excelente exemplo do IMPA.

De que formas Ciência Pioneira vai atuar para impulsionar o trabalho de cientistas brasileiros que estão na fronteira do conhecimento?

Hoje, o investimento mundial em pesquisa continua aumentando substancialmente, enquanto a produtividade continua a decrescer. O aumento constante do volume tende a compensar o decréscimo do impacto da pesquisa, mas isso claramente cria uma situação insustentável para qualquer economia, em especial para os países em desenvolvimento. As ideias realmente inovadoras tornam-se relativamente cada vez mais raras, em proporção às ideias incrementais, levando a uma queda de produtividade de cerca de 7% ao ano. No caso dos EUA, para o qual há dados robustos, esse déficit de produção de ideias se reflete em diversos campos, como no setor agrícola, nas inovações médicas, em semicondutores e na redução de mortalidade associadas ao câncer e às doenças cardíacas.

Há também evidências de que a produtividade da pesquisa diminui com o tamanho das empresas, na medida em que elas adotam políticas de inovação mais defensivas que proativas em pesquisa. Assim, há fortes indícios de que não basta aumentar subsídios para produtividade em pesquisa; é necessário fomentar a geração de novas ideias realmente inovadoras, sua disseminação e potencial replicação e adoção por outros.

O programa Ciência Pioneira tem como missão incentivar e apoiar talentos com espírito inovador a perseguirem questões científicas com potencial disruptivo.

Queremos engajar diferentes setores da sociedade, incluindo a iniciativa privada e filantrópica, e, assim, contribuir ativamente para o desenvolvimento da Ciência de fronteira no Brasil. O que qualquer um de nós pode fazer como financiador sempre será limitado. Mas nossas ações têm o poder de catalisar mudanças maiores, que podem se propagar na cultura e nos sistemas de ciência em todo o mundo. Todos nós nos beneficiaremos de um mundo em que os cientistas possam explorar, com rigor científico, suas ideias mais ousadas.

Confira neste infográfico como identificar cientistas maverick.

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