Iniciativa Ciência Pioneira promove treinamento avançado de pesquisadores brasileiros e desenvolvimento de pesquisas em áreas promissoras, mas ainda pouco exploradas no país
Em maio de 2022, poucas semanas após defender seu doutorado na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), no Rio de Janeiro, o biólogo molecular Thyago Legal recebeu uma mensagem de seu ex-orientador, o biólogo Milton Ozório Moraes, sobre uma oportunidade de estágio de pós-doutorado no exterior. “Não tinha pretensão de sair do Brasil, mas mudei de ideia ao saber que teria a chance de trabalhar com a bioquímica norte-americana Jennifer Doudna”, conta Leal, referindo-se a um dos nomes mais conhecidos por trás da técnica de edição gênica Crispr-Cas9. Em 2012, ao lado da geneticista francesa Emmanuelle Charpentier, Doudna mostrou que a enzima Cas9 podia ser guiada por uma fita simples de RNA sintético para editar o DNA das células. Em 2020, elas dividiram o prêmio Nobel de Química.
Doudna está à frente do Instituto de Genômica Inovadora (IGI), vinculado à Universidade da Califórnia em Berkeley, nos Estados Unidos, onde trabalha como pesquisadora. A instituição recentemente firmou uma parceria com a Ciência Pioneira, iniciativa sem fins lucrativos lançada em 2022 com apoio do Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino (IDOR) para financiar o treinamento avançado de jovens pesquisadores brasileiros e o desenvolvimento de pesquisas em áreas promissoras, mas ainda pouco exploradas no Brasil, por meio de bolsas de pós-doutorado e colaborações com universidades e centros de pesquisa de prestígio nacionais e do exterior, entre eles o Instituto Weizmann de Ciência, em Israel, a Universidade Stanford, nos Estados Unidos, o King’s College de Londres, no Reino Unido, e as universidades federais do Rio de Janeiro (UFRJ) e de Minas Gerais (UFMG).
Pelo menos 31 cientistas e jovens pesquisadores (entre eles alunos de doutorado e estagiários de pós-doutorado) já foram contemplados pela iniciativa, que pretende investir mais de R$ 500 milhões nos próximos dez anos. Um deles é Thyago Leal, que desde o início do ano está no IGI, na Califórnia, empreendendo estudos sobre o possível uso da metodologia Crispr no tratamento da doença de Alzheimer. Sua pesquisa baseia-se em trabalhos da bioquímica Fernanda De Felice, da UFRJ, coordenadora de uma das linhas de pesquisa apoiadas pela Ciência Pioneira na área de doenças neurodegenerativas.
O projeto se encontra em fase de estudos com células cultivadas em laboratório, os chamados estudos in vitro. O plano é avançar para os estudos in vivo, com modelos animais da doença de Alzheimer, em 2024. A pesquisa pode abrir caminho para novas formas de tratamento dessa enfermidade, contra a qual ainda não há medicação eficaz. Para Leal, essa também tem sido uma oportunidade de aprender uma técnica nova e ainda pouco usada em países em desenvolvimento. “Esse tipo de treinamento avançado é importante porque coloca o Brasil em contato com novas tecnologias e conhecimento de fronteira”, afirma o biólogo molecular, que deverá ficar nos Estados Unidos até o início de 2025.
Outro pesquisador brasileiro no IGI é o médico Bruno Solano, que estuda formas de usar o Crispr no tratamento da anemia falciforme, doença causada por uma mutação genética que provoca a deformação dos glóbulos vermelhos. O objetivo é desenvolver alternativas mais acessíveis e de menor custo — os tratamentos com Crispr para anemia falciforme atualmente podem chegar a US$ 2 milhões.
A expectativa é que Leal e Solano, assim como os outros bolsistas apoiados pela Ciência Pioneira, voltem para o Brasil, estabeleçam-se como pesquisadores e ajudem a acelerar o desenvolvimento de ciência inovadora no país, com apoio da iniciativa. “Um dos nossos objetivos é criar condições competitivas para que os pesquisadores retornem ao país e deem continuidade às suas pesquisas, em colaboração com instituições nacionais e internacionais, ajudando a criar e a intensificar novas redes de colaboração, no âmbito das quais poderão produzir estudos originais e de alto impacto”, destaca o neurocientista Jorge Moll Neto, um dos idealizadores da Ciência Pioneira.
Alguns terão a possibilidade de fazer parte dos laboratórios que a Ciência Pioneira está montando em parceria com o IDOR, para que possam desenvolver seus projetos com tranquilidade e estabelecer agendas científicas calcadas em temas na fronteira do conhecimento, enquanto se articulam para buscar novas fontes de financiamento para suas pesquisas e consolidam suas carreiras.
Além de financiar pesquisas em áreas pouco exploradas, mas que podem se traduzir em avanços importantes, a Ciência Pioneira também se propõe a apoiar estudos em campos convencionais, com o objetivo de ampliar a compreensão sobre o mundo biológico e questões de saúde que afetam a humanidade.
No Instituto Weizmann de Ciência, o educador físico Paulo Cesar Rocha dos Santos estuda como se dá a comunicação entre o cérebro e os músculos no caminhar de indivíduos com doença de Parkinson, caracterizada pela morte progressiva dos neurônios responsáveis pela produção de uma importante substância química, o neurotransmissor dopamina.
“Estamos usando ambientes de realidade virtual para entender como o cérebro controla os movimentos de pacientes com a doença,” diz o pesquisador, que desenvolve seu estágio de pós-doutorado em parceria com o Centro de Tecnologias Avançadas em Reabilitação do Centro Médico Sheba, em Tel Aviv. “A expectativa é que a pesquisa, no futuro, abra espaço para usarmos essa tecnologia na terapia e reabilitação desses indivíduos, retardando a progressão da doença e melhorando seus sintomas motores.”
E ele acrescenta: “a Ciência Pioneira tem sido fundamental nesse sentido, ampliando nossas perspectivas de financiamento”. “Espero que outra iniciativas similares surjam no Brasil nos próximos anos”, completa.
Em outra frente, a Ciência Pioneira quer atrair pesquisadores estrangeiros para integrar grupos de excelência em instituições brasileiras, desenvolver estudos de impacto, estabelecer novos campos de investigação e ajudar a formar novos pesquisadores, aumentando a massa crítica local — a vinda de estrangeiros tende a ser valorizada por cientistas brasileiros porque promove a circulação de conhecimento e o contato com novas perspectivas de pesquisa.
A bióloga Teresa Puig Pijuan é uma das bolsistas da Ciência Pioneira. No laboratório dos neurocientistas Stevens Rehen e Marília Zaluar Guimarães, ambos professores da UFRJ e pesquisadores afiliados ao IDOR, ela trabalha no desenvolvimento de modelos celulares de tolerância e dependência, psicológica e fisiológica, de opioides. “O objetivo é usá-los para testar novas estratégias terapêuticas para tratar o vício a essas substâncias”, diz Pijuan, que passou seis meses nos Estados Unidos, com recursos da Ciência Pioneira, em um período de aperfeiçoamento profissional na firma de biotecnologia Promega e no Instituto Usona, estudando como substâncias psicodélicas podem ser uteis nesse sentido.
Comuns em países desenvolvidos, instituições privadas de apoio à ciência ainda são raras no Brasil — entre os exemplos existentes, há o Instituto Serrapilheira, que apoia pesquisas em ciências da vida, ciências físicas, engenharias e matemática.
A Ciência Pioneira, no entanto, destaca-se por seu interesse em pesquisas guiadas pela curiosidade intelectual dos pesquisadores e potencial disruptivo. “Grandes avanços científicos nascem de visões ousadas que inauguram áreas novas e totalmente inesperadas”, diz Moll Neto. “A pesquisa guiada pela curiosidade tem o condão de produzir um tipo realmente novo de conhecimento, um conhecimento capaz de ir além das expectativas iniciais do cientista, das agências financiadoras e da sociedade de um modo geral.” Segundo ele, isso contrasta com os passos programados que compõem a maior parte da estrutura sólida do progresso científico. “É importante manter um ecossistema equilibrado de financiamento, no qual sejam contemplados projetos talhados para gerar novos produtos e tecnologias, e também aqueles voltados a questões desconhecidas ou emergentes.
“É admirável, e estrategicamente muito acertado, que a Ciência Pioneira apoie projetos disruptivos, pois é esse tipo de ciência que pode realmente fazer a diferença no longo prazo”, destaca Hugo Aguilaniu, diretor presidente do Instituto Serrapilheira.
Ele explica que pesquisas mais audaciosas, em áreas de fronteira ou baseadas na curiosidade intelectual dos pesquisadores, tendem a ter menos chance de êxito em um curto espaço de tempo e, por isso, têm mais dificuldade para conseguir apoio das agências de fomento públicas. “Recursos privados podem preencher essa lacuna, assumindo maior risco e ajudando o Brasil a desenvolver um sistema de financiamento científico moderno, produtivo, equilibrado e diversificado, baseados em projetos com diferentes graus de risco, como em países como Estados Unidos, Alemanha e Reino Unido”, ele diz.
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