Everton Maraldi é psicólogo, pesquisador do Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino (IDOR) e professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da PUC-SP. É coordenador do Núcleo de Estudos Psicológicos da Religião e do Grupo de Pesquisa em Experiência Religiosa e Estados Alterados de Consciência, ambos da PUC-SP. Estuda, entre outros temas, espiritualidade, religião e saúde, psicologia social da religião, dissociação e transtornos dissociativos, história das pesquisas psicológicas e psiquiátricas sobre religiosidade.
Nesta entrevista, ele fala sobre o lugar das crenças na sociedade e de como impactam os processos de decisão em diversas áreas da vida humana, inclusive na saúde. Explica o que são experiências não ordinárias e como um melhor entendimento sobre elas pode ajudar a trazer uma nova percepção sobre a religiosidade e a personalidade do brasileiro. Everton apresenta ainda o projeto pioneiro de pesquisa em Neurociência e Psicologia das Crenças, desenvolvido no IDOR, que estuda o impacto das crenças e da espiritualidade em processos cerebrais e neurofisiológicos e na psicologia.
Everton: Primeiro, é importante entender o lugar das crenças na sociedade. Elas têm impactos em diferentes dimensões da vida humana: por exemplo, na política, na economia e na saúde, que é o nosso foco. Muitas das decisões tomadas pelas pessoas, por exemplo em relação a em quem elas vão votar ou onde vão investir, dependem de expectativas e de crenças.
Uma área fundamental no estudo das crenças é, certamente, o da religiosidade/espiritualidade. Houve um período em que estudar espiritualidade e religiosidade era visto de forma negativa. Existia uma resistência dentro do meio acadêmico a esse tema, muito em função de um processo forte de secularização, sobretudo na Europa e nos Estados Unidos. Então o tema se tornou um tabu ou passou a ser interpretado como negativo em relação à saúde. Uma figura central dessa mentalidade foi Freud, que relacionava a religiosidade à neurose obsessiva: ele associava os rituais religiosos aos rituais de pacientes com transtorno obsessivo compulsivo para lidar com a ansiedade e as suas angústias.
A partir da segunda metade do século 20, essa visão começou a mudar em função de uma série de transformações sociais: a abertura para práticas como a meditação; o interesse nas experiências dos psicodélicos; e o interesse no misticismo ocidental e oriental. Estudos também começaram a emergir mostrando os efeitos psicológicos e fisiológicos das práticas espirituais.
Tudo isso ajudou a estabelecer e, posteriormente, a institucionalizar toda uma área de pesquisas, que é a espiritualidade e saúde, que procura entender qual o impacto das práticas religiosas e espirituais, das crenças e das vivências, na saúde tanto física quanto mental.
O efeito placebo, por exemplo, já é comumente estudado em vários experimentos dentro da medicina. Quando uma pessoa toma um medicamento, parte do efeito é psicológico – não é necessariamente um resultado do princípio ativo da medicação. É um exemplo de como as crenças têm um impacto enorme na saúde.
Nos melhores estudos, com a melhor qualidade em termos de cuidados metodológicos, constatou-se que a espiritualidade tem um impacto significativo na saúde, tanto física quanto mental. Alguns estudos mostram, por exemplo, que ter uma religiosidade ou uma espiritualidade e exercitar isso pode ser tão impactante quanto parar de fumar, dedicar-se a exercícios físicos regularmente ou ter hábitos alimentares saudáveis. Na saúde mental, dados mostram o impacto da espiritualidade no bem-estar subjetivo, por exemplo, no enfrentamento do luto. Há também estudos que indicam que não haveria uma relação com saúde ou evidências mostrando efeitos negativos. E quando esse impacto é negativo, existe o desafio de entender como abordar isso em um contexto clínico.
O Brasil tem um potencial enorme para a área de neurociência e psicologia das crenças, pelo nosso contexto cultural, muitas vezes de hibridismo religioso. Alguns pesquisadores brasileiros têm se destacado na área internacional, sobretudo nesse campo da espiritualidade. A Fundação John Templeton tem um interesse grande no desenvolvimento dessas pesquisas no Brasil e tem procurado pesquisadores e grupos que possam realizar estudos. E esse olhar que o IDOR está trazendo, no sentido de pensar não só o impacto para a saúde, mas uma perspectiva mais abrangente, do ponto de vista dos processos cerebrais e neurofisiológicos, e de olhar a psicologia também de uma maneira mais ampla, é um esforço pioneiro.
A forma como a gente vê o mundo não é simplesmente um espelho da realidade. A nossa compreensão das coisas sempre passa por um filtro que é determinado por esquemas mentais que vão incluir sistemas de crenças. E a forma como a nossa mente entende e explica eventos e atribui causalidade – por exemplo, porque algo acontece de determinada forma, se dá certo ou errado – vai influenciar nossas decisões. Se uma pessoa entende que um acontecimento é causado por ação de um demônio, de um espírito ou do destino, isso vai afetar o comportamento dela de modo diferente do que se ela entender que aquilo é um problema orgânico ou um efeito relacionado às suas atitudes.
Então estudar como as crenças se estruturam é fundamental para que possamos ajudar as pessoas a se compreender, em um processo de autoconhecimento.
Algumas teorias psicológicas e neurofisiológicas falam de como as pessoas tentam entender a sucessão dos eventos na vida e prever o que vai acontecer a partir desse sistema de crenças. Se você pensar de uma perspectiva evolucionista, o organismo está sempre tentando encontrar situações que sejam mais adaptativas, que garantam a sobrevivência. Nosso cérebro está o tempo todo fazendo isso e compreender como, quais são os mecanismos e se é ou não possível alterá-los, quando atuam de forma disfuncional, é muito importante não só cientificamente, mas também do ponto de vista prático.
É muito comum que as pessoas relatem, no contexto religioso, experiências espirituais, por exemplo, como ver uma pessoa falecida ou ter uma visão de um santo. Experiências desse tipo estão na base de diferentes tradições espirituais. Mesmo fora do contexto religioso, muitas pessoas reportam experiências em que se veem fora do corpo, às vezes em situações de proximidade com a morte ou que, em processo de luto, tiveram visões de pessoas falecidas. Outras relatam terem tido algum pressentimento sobre coisas que iriam acontecer. Como psicólogo, a gente sempre se pergunta em que medida essa experiência é um sinal de transtorno mental – porque, na literatura, em muitos casos de transtorno psicótico, o conteúdo de certas alucinações ou delírios é religioso ou envolve elementos da crença em fenômenos paranormais como telepatia e premonição.
Então, a pergunta é: quando eu consigo diferenciar uma experiência religiosa ou espiritual saudável de uma experiência patológica?
Hoje, a gente sabe que certas experiências alucinatórias são recorrentes na população. E essas experiências são chamadas de não ordinárias, anômalas ou excepcionais, porque são relatadas por pessoas não religiosas também. São termos mais neutros em relação à causa ou origem da experiência, mas são ainda inadequados, porque essas experiências estão longe de serem incomuns ou excepcionais.
A prevalência dessas experiências na população em geral é muito maior do que a prevalência de vários transtornos mentais. Isso sugere que elas não são, em si, patológicas. Mas quando há essa fronteira difícil de definir, como eu faço essa avaliação? Existe toda uma literatura discutindo critérios diagnósticos, como diferenciar e ajudar uma pessoa quando ela tem uma vivência mais patológica, em termos de psicoterapia e de atendimento médico. Mas os critérios existentes – como ausência de sofrimento ou desadaptação social – são mais úteis quando lidamos com casos ou exemplos extremos. Ainda é preciso avançar na compreensão de outros fatores que lancem luz na caracterização dessas diversas experiências.
A professora Ann Taves tem desenvolvido, durante alguns anos, um novo arcabouço teórico sobre essas experiências, porque existe uma discussão na literatura entre a experiência e a crença. Uma coisa é a experiência que a pessoa tem e outra é a interpretação que ela dá, que pode ser religiosa, neuropsicológica ou médica. Então o que ela se perguntou é: como diferenciar uma coisa da outra? Existe uma experiência base, fenomenologicamente falando, que pode ser separada das atribuições que as pessoas fazem? E uma vez fazendo isso, qual é a prevalência dessas experiências na população, independentemente de como as pessoas as interpretam, atribuem sentido ou explicação? Por sua vez, que papel desempenham as crenças e atribuições nas implicações psicossociais e de saúde das experiências não ordinárias?
Ela começou então a desenvolver um inventário de experiências não ordinárias, que se baseia e ao mesmo tempo amplia as propostas de vários questionários existentes. Esse estudo foi feito inicialmente nos Estados Unidos, teve um segundo braço na Índia e foi feita uma primeira tentativa de execução no Brasil, que não foi muito longe. Agora, estamos trabalhando nesse segundo projeto, em colaboração com os colegas do IDOR e com financiamento da Fundação John Templeton. Foi pensado um projeto mais amplo, no sentido de não só validar o questionário no Brasil, mas de pensar também as implicações dessas experiências para a saúde mental e o contexto cultural brasileiro.
A partir do que já sabemos, de outros estudos com amostragem menor, a prevalência dessas experiências no Brasil tende a ser muito mais elevada do que em outros países. Então existe uma receptividade cultural muito grande a esses temas, mesmo por pessoas que não têm uma prática religiosa definida. O interesse por esses assuntos está nas matérias jornalísticas, nas novelas e na cultura, de modo geral. Então existe uma abertura e isso é muito interessante, porque quando se compara com países como Reino Unido, em que as religiões têm um impacto menor na sociedade, pode ser que exista uma tendência de se olhar essas experiências como mais mórbidas ou excêntricas.
No Brasil, que tem um contexto muito receptivo, como isso acontece? Não temos esse dado, porque a maior parte das pesquisas na área têm sido conduzidas em países europeus ou nos Estados Unidos. Então é importante fazer essa investigação e compreender melhor como essas diferenças culturais podem impactar a nossa sociedade.
Veja também o infográfico “Como a história abriu espaço para a neurociência e a psicologia das crenças“, em que mostramos uma linha do tempo com alguns dos principais marcos que ajudaram a estabelecer a pesquisa na área.
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