Stevens Rehen é neurocientista do Instituto D’Or, professor licenciado do Instituto de Biologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e cientista visitante da Promega Corporation e do Usona Institute. Ao longo de sua carreira, Rehen publicou mais de 100 artigos científicos, atuou como presidente da Sociedade Brasileira de Neurociência e Comportamento e foi pioneiro no cultivo de células-tronco embrionárias e pluripotentes induzidas humanas (iPS) e organoides cerebrais no Brasil.
Nesta entrevista, o pesquisador explica o que são as células-tronco pluripotentes induzidas, ou células reprogramadas, e como elas são capazes de criar organoides. Ele também mostra as diferentes pesquisas que desenvolveu a partir do uso de organoides cerebrais: estudos que vão desde a busca por medicamentos para o Alzheimer até os efeitos de substâncias psicodélicas no cérebro, passando pela investigação sobre doenças virais, como zika e covid-19. Stevens Rehen aborda ainda os desafios da ciência brasileira em relação às pesquisas com organoides e vislumbra possibilidades para o futuro.
Stevens Rehen: Em 2007, a partir do trabalho do pesquisador Shinya Yamanaka, tornou-se possível reprogramar células humanas. De certa forma, foi como se pesquisadores conseguissem ter acesso a informações que ficavam escondidas em células adultas. Por exemplo, as células do nosso cérebro têm a capacidade de formar um coração, mas é claro que isso não acontece – imagine o que seria se houvesse células especializadas surgindo em lugares aleatórios de nosso corpo, locais a que não pertencem? A partir dessa tecnologia, desenvolvida no Japão, foi possível criar células com características embrionárias provenientes de células da pele, ou da urina.
Eu comecei a estudar o tecido cerebral há quase 30 anos, enquanto aluno de iniciação científica no laboratório do Professor Rafael Linden, na UFRJ, mas foi a partir de 2008 que passei a usufruir de células reprogramadas, e das possibilidades que elas geram. Conseguimos reprogramar células obtidas de pacientes com Alzheimer, com epilepsia e esquizofrenia.
Conseguimos estudar algumas características do cérebro de um paciente a partir de células extraídas da urina ou oriundas de uma biópsia de pele. É daí que vem a beleza desse modelo experimental.
Está em franca expansão: é uma área de grande interesse científico, não só na área acadêmica, mas também dentro das empresas de biotecnologia, por se tratar de modelo experimental promissor para o estudo de doenças humanas. No caso de doenças degenerativas, por exemplo, é possível identificar, nos organoides cerebrais, fenótipos celulares equivalentes ao que aparece no paciente.
As células de nosso corpo estão organizadas e se comunicam em estruturas complexas, nos tecidos e órgãos, e não simplesmente numa camada única e bidimensional, mas em estruturas tridimensionais. Hoje, pesquisadores conseguem dar instruções para que as células reprogramadas cresçam em laboratório conforme os tecidos base do ser humano. No caso de tecido cerebral, essas células conseguem se organizar em estruturas que lembram o cérebro humano mas podem chegar somente até 5 mm de tamanho – não crescem mais, porque falta vascularização para fazer o tecido crescer. Esses organoides, que podem chegar a reunir em torno de 5-10 milhões de células, são os organoides cerebrais.
Por meio deles, conseguimos acompanhar no laboratório algumas características do metabolismo do cérebro vivo.
Com eles, temos um modelo experimental vivo e humano em laboratório. Um exemplo concreto é a doença de Alzheimer. Podemos observar, nos organoides, características do cérebro com a doença, aumento da forma fosforilada da proteína tau e a formação de placas beta-amiloides. A partir dessas observações, é possível testar medicamentos ou condições para mitigar o que observamos in vitro e que são equivalentes àquilo que é observado in vivo também. Temos ainda como estudar a Síndrome de Dravet, que é uma forma grave de epilepsia infantil causada por uma mutação específica.
No Instituto D’Or, tivemos o acesso à urina de crianças, reprogramamos as células e, agora, estamos estudando a atividade elétrica do tecido cerebral criado, que reproduz as crises epiléticas que a gente observa nos pacientes. Também estudamos infecções virais. Nosso grupo foi o primeiro a mostrar, por meio dos organoides, como se dá a infecção pelo vírus zika. Fizemos algo parecido com o SARS-CoV 2.
Em 2013 me juntei ao grupo IDOR. Temos em torno de 15 pessoas trabalhando no laboratório, entre staff e estudantes. Temos projetos financiados no Brasil e no exterior.
O aprendizado é constante. Precisamos sempre buscar o estado da arte da ciência, acompanhar os demais grupos de pesquisa em outros países. Geramos contribuições importantes na época da epidemia de zika vírus. Temos vários trabalhos científicos sobre o tema: identificamos as células do cérebro humano afetadas pela doença; as consequências da infecção para o funcionamento do tecido cerebral. Tivemos resultados significativos também em relação à biologia da esquizofrenia e sobre o papel das células do cérebro de pacientes com esse transtorno mental na formação dos vasos sanguíneos.
Também estudamos os psicodélicos. Com o uso de organoides cerebrais, identificamos o efeito de um composto derivado da ayahuasca que interfere no transporte de uma proteína associada à Doença de Alzheimer. Temos outro artigo científico em que mostramos que o LSD tem um efeito sobre neuroplasticidade. Fizemos esse estudo em organoides e, depois, complementamos os testes em animais e humanos. Pesquisamos também o 5-MeO-DMT, que é um psicodélico produzido por um sapo. Observamos que esse composto tem efeito sobre neuroinflamação.
O interesse pelos psicodélicos veio pelo privilégio que tive de acompanhar o trabalho do meu irmão caçula, Lucas Kastrup, que é antropólogo e músico. Ele estudou o processo de construção das músicas associadas às religiões que têm como sacramento a ayahuasca. São religiões tradicionais do Brasil que têm como base o consumo da ayahuasca. Além de acompanhar o trabalho feito pelo meu irmão, observava, também, as pesquisas de colegas, como Sidarta Ribeiro, Dráulio Araújo e Luís Fernando Tófoli, que são cientistas na área de neurociências e psiquiatria e que fazem estudos interessantes sobre psicodélicos há muitos anos. Em 2013, comecei a me perguntar de que maneira esse nosso modelo experimental de organoides poderia contribuir para o entendimento do efeito dos psicodélicos no cérebro.
Há várias instituições de pesquisa dedicadas aos estudos com organóides e à identificação de fenótipos de doenças humanas. Esse desenvolvimento tem sido impressionante, inclusive no Brasil. Mas aqui temos outros desafios que estão ligados à falta de apoio às universidades nos últimos anos.
Dentro de uma década, acredito que a pesquisa sobre organoides cerebrais estará significativamente avançada.
Uma decisão recente do FDA norte-americano já sinaliza uma tendência ao incentivo de modelos alternativos de pesquisa que não envolvam o uso de animais.
Como resultado, podemos esperar uma sofisticação crescente dos modelos experimentais, onde organoides serão combinados com tecnologias emergentes, como sistemas de microfluídica, proporcionando insights mais profundos e precisos sobre o funcionamento do corpo humano.
Veja também o infográfico “Aplicação de organoides cerebrais na pesquisa com psicodélicos”. Nele, mostramos como os organoides cerebrais podem ser aplicados para responder a diferentes perguntas científicas.
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