Gabriela Barreto Lemos, física e professora da UFRJ

As aventuras da luz e seus fenômenos quânticos

1 de setembro de 2023

Gabriela Barreto Lemos é professora do Instituto de Física da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), membro da Comissão de Justiça, Equidade, Diversidade e Inclusão da Sociedade Brasileira de Física (SBF) e do corpo editorial da Quantum Science and Technology (IOP Publishing).

Durante os anos de iniciação científica, na época da graduação em Física na Universidade Federal de Minas Gerais, entre 2000 e 2004, Gabriela teve seu primeiro contato com a física quântica. Desde então, vem construindo uma extensa e apaixonada experiência com física teórica e experimental, com ênfase em óptica e informação quântica. Todo esse trabalho tem levado a cientista a desenvolver novos experimentos e técnicas de geração de imagem e a inéditos focos de pesquisa, como o projeto Visão Quântica – que converge neurociência e física para estudar se e como nosso sistema visual percebe fenômenos quânticos.

Nesta entrevista, Gabriela fala sobre luz, fótons, emaranhamento e dualidade onda-partícula. Fala também sobre a importância de fazer perguntas difíceis e manter um olhar curioso para construir a ciência; e sobre como se abrir a novos olhares e ao diálogo com outras áreas – de arte e filosofia às demais ciências naturais – é chave para romper barreiras e fazer descobertas revolucionárias.

Ciência Pioneira: O que é um fóton?

Gabriela: Existe uma pergunta antiga, que fazemos desde os egípcios: o que é a luz e do que ela é formada? Ao longo da história da ciência, diferentes pessoas deram diferentes respostas a essa pergunta, e ela foi evoluindo. No século 20, a gente passou a entender a luz como algo formado por elementos mínimos de energia, indivisíveis, que são os fótons. Ao mesmo tempo que se comportam como corpúsculo, eles possuem também um certo caráter ondulatório – no sentido de que, ao fazer experimentos com a luz, ela manifesta fenômenos característicos de experimentos que a gente faz com outros tipos de onda, como da água, e com outros tipos de matéria, como uma bola de futebol. Então a gente fala que o fóton não é nem uma partícula nem uma onda, é um quanta, um elemento mínimo de alguma coisa. De fato, é algo muito complexo, porque a gente quer pensar no fóton como uma bolinha de luz, mas não é. É algo que a gente realmente tem muita dificuldade de compreender com a nossa forma moderna de pensar.

O que fótons têm a ver com a óptica quântica?

A ótica é o estudo da luz e dos efeitos luminosos, e nasceu na Pérsia, pouco mais de mil anos atrás, com o livro Ótica. Depois, chegou na Europa, foi estudada por Newton, por Descartes e surgiram diversos modelos sobre como a luz se propaga e como ela interage com os materiais.

Na ciência, não temos verdades, só modelos. E o melhor que a gente tem hoje na óptica é o fóton.

Assim, a óptica quântica nasceu com o fóton e estuda como a luz interage com os átomos, com detectores (inclusive com o olho), como ela se espalha, como ela se direciona – tudo isso, por meio da modelagem da luz como fóton. A óptica quântica explica então, através dos fótons, as aventuras da luz no universo e como ela interage com a matéria.

Para estudar fenômenos quânticos, qual a importância do contexto da observação? O que permite observarmos fenômenos quânticos?

Quando a gente anda pela rua, não se dá conta dos fenômenos quânticos que estão acontecendo ali, a todo momento. A gente só consegue acessar fenômenos quânticos mais diretamente quando trabalha com experimentos muito controlados e com detectores muito sensíveis. E quando a gente faz isso, precisa criar um contexto de observação. Eu falei que os fótons têm um caráter corpuscular e às vezes um caráter ondulatório: não são nem corpúsculo, nem onda. Isso significa que dependendo do contexto em que eu observo fótons, a partir da pergunta que eu coloco através de elementos experimentais, vou ter respostas diferentes. Se eu fizer perguntas ondulatórias, a luz vai me dar respostas ondulatórias. E isso é diferente de influenciar o resultado do experimento, porque o que eu defino é a pergunta: a gente cria o contexto que faz a pergunta, que tem uma gama de possíveis respostas, mas a resposta que a natureza vai nos dar a gente não sabe e não controla.

Claro que isso, de certa forma, é verdade para toda ciência. Mas na física clássica eu posso, por exemplo, testar qual é a velocidade de um corpo e ao mesmo tempo perguntar qual é a sua posição num dado instante. Já na física quântica você não consegue fazer essas duas perguntas simultaneamente: precisa fazer uma e depois a outra, e então não é possível criar uma narrativa muito clara com as respostas. É isso que torna a física quântica muito diferente de outras ciências naturais.

Em 2014, você estava no Instituto para Ótica Quântica e Informação Quântica de Viena, na Áustria, e liderou um experimento publicado na revista Nature em que foi produzida uma “fotografia fantasma” na forma de um gato. Nesse experimento, qual pergunta foi feita para criar esse contexto?

Era uma pergunta bem simples, mas complicada. Primeiro, o que a gente pode ganhar quando tenta, ao mesmo tempo, testar fenômenos ondulatórios e corpusculares da luz? Para isso, a gente faz perguntas no meio do caminho – para as quais não se espera uma resposta totalmente corpuscular e nem uma resposta totalmente ondulatória. Existiam experimentos famosos, lindíssimos, que faziam essas perguntas nos anos 90. A essa primeira questão, se juntou outra: será que a gente pode associar a isso uma formação de imagem? Como a gente pode formar uma fotografia? Então a ideia do experimento era usar perguntas que misturam os caráteres ondulatório e corpuscular da luz para avaliar as possibilidades de criação de imagens, de modo diferente do paradigma usual de criação de imagem.

No final, produzimos uma imagem no feixe de luz que não interagiu com o objeto. E isso ganhou muito a imaginação das pessoas, porque parecia um fantasma.

Desde então, como esse experimento impactou o seu trabalho? Com o que você tem trabalhado?

Uma linha de pesquisa em que comecei a trabalhar foi aprimorar o sistema de imageamento que a gente tinha criado para pensar em aplicações mais práticas, como no ramo da biologia e de análise de materiais. Outra área foi investigar o que eu posso fazer com esse sistema para indagar sobre emaranhamento quântico.

Fiz alguns trabalhos sobre isso que me interessaram muito, porque as respostas me surpreenderam: descobri formas de manipular informação e fazer o compartilhamento de informação através do emaranhamento, algo que eu não imaginava ser possível.

Hoje estou trabalhando aqui na UFRJ na área de metrologia quântica, que é uma área nova para mim. Estou aprendendo muito sobre os limites de precisão de medidas e a gente começou um projeto muito bonito que pergunta o seguinte: se as propriedades quânticas não existem pré-definidas antes de fazermos medidas, o que significa uma medida precisa? Se aquilo só passa a existir naquele momento, então como você pode falar se a medida foi ou não precisa? É um projeto que envolve físicos e filósofos e a gente tem o papel de fazer essas perguntas filosóficas aparecerem no laboratório como perguntas experimentais.

Qual é o potencial de recorrer a outras áreas, que parecem estar tão distantes, como a filosofia e as artes para pensar a física quântica?

Eu acho que é imenso, porque diferentes pessoas têm diferentes visões. Eu venho participando de congressos interdisciplinares, inclusive de música quântica, e fui criticada pelos meus colegas da física, mas aprendi muito! São belíssimos os trabalhos.

Muitas das coisas que me parecem difíceis de entender na física quântica se tornam mais compreensíveis quando eu olho através da arte. Em muitos momentos a arte é menos dogmática e permite mais imaginação. Ao mesmo tempo, onde a arte fica mais dogmática, a física puxa o tapete e deixa a imaginação voar. Por isso, nessa interação, todo mundo ganha!

Eu aprendo muito e meus colegas da arte também. Mas a ciência moderna não dá muito espaço para essas indagações, porque é preciso fazer uma distinção entre aquilo que é sério e o que é picareta. E às vezes é difícil, não é tão claro. Mas isso também nos faz aprender a ter uma visão crítica de nós mesmos, do nosso próprio trabalho.

A interdisciplinaridade é necessária para fazer ciência de fronteira?

Ciência de fronteira precisa da imaginação. A ficção científica, por exemplo, antecipou tanta ciência! Essa imaginação é o que nos leva além da nossa zona de conforto, que às vezes é um lugar perigoso, mas é só ali que você vai conhecer coisas novas. Então quando o buraco negro surgiu como uma solução para as equações de Einstein, ele não gostou, gerou um incômodo. E hoje a gente sabe que mais do que existir, buracos negros têm uma função fundamental no universo, são o centro da maioria das galáxias, inclusive da nossa. Passaram-se 50 anos e a gente vê tudo isso que desafia tanto nossa mente, como ondas gravitacionais – e estamos aqui vivendo isso, olha que incrível! Que salto de imaginação a ciência nos exige para ver até onde a solução pode ir e o que aquilo significa. Se você estiver muito preso ao seu lugar, às vezes vai descartar essas possibilidades. O Visão Quântica e todos esses projetos pelos quais eu me interesso empurram um pouco esse limite, essa fronteira. E, ao mesmo tempo, têm pessoas que vão trabalhar mais dentro dos limites da física, o que também é muito importante.

Na ciência, nós precisamos, ao mesmo tempo, de pessoas que querem puxar os limites e de pessoas que querem solidificar aquilo que foi encontrado.

Como o seu trabalho com óptica quântica a levou para o projeto Visão Quântica?

Eu estava trabalhando nos Estados Unidos quando o Jorgito Mol e o Marcelo França me escreveram, perguntando se eu tinha interesse em pesquisar a interação de neurociência com física quântica. E eu falei “vão bora”! A ideia era estudar a visão e nossa percepção direta de fenômenos quânticos.

Então, começamos a pesquisar como a gente pode testar se o olho consegue perceber emaranhamento; se o olho vê diretamente o caráter corpuscular e ondulatório da luz; se o olho distingue que a luz é formada por fótons e não por ondas tradicionais; se a gente tem alguma resposta interna sobre uma percepção quântica da luz, mesmo que a gente não tenha consciência desses efeitos.

Quando eu voltei para o Brasil, durante a pandemia, a gente começou a pensar mais seriamente em realizar esse projeto. Chamamos mais pessoas para o grupo, como Ado Jorio e Carlos Monken, da UFMG, que trabalham com sistemas lindíssimos, Bruss Lima, biólogo da UFRJ, e Gustavo Rohenkohl, um cara incrível que trabalha com a psicofísica do sistema visual. E está sendo essencial trabalhar com o Gustavo e o Bruss, porque eles têm experiência exatamente com o tipo de experimento que a gente está começando agora. Eles estão aprendendo muita física e a gente está aprendendo muito sobre a percepção humana, sobre o olho e como o cérebro processa informações.

Em que experimentos vocês estão trabalhando e pretendem trabalhar?

A gente está repensando experimentos de óptica quântica que nos deram mudanças de paradigma da luz, que nos fizeram entender a luz como fóton, da seguinte forma: ao invés de usar detectores para indagar sobre a luz, vamos usar a luz para indagar sobre o detector. As perguntas mudam, mas a base é a mesma. Então, vamos usar o caráter quântico da luz para indagar sobre como nós detectamos essa luz, desde a retina até o córtex visual e em relação a percepção e comportamento. Agora, estamos começando experimentos de psicofísica e depois vamos passar para experimentos de ressonância magnética funcional, para fazer essas perguntas em diferentes níveis. Mas são tantas possibilidades, porque estamos explorando algo muito novo: a gente sabe muito de sistema visual, mas pouquíssimo sobre como ele interage com o caráter quântico da luz.

Tem pessoas que já fizeram alguns experimentos de teste de percepção direta de fenômenos quânticos, mas a gente está indo para um caminho um pouco diferente. E muitos experimentos foram feitos ou pelo pessoal da neuro ou pelo pessoal da física, separadamente, e isso gera inconsistências e perguntas não respondidas. A gente está unindo os dois campos, e isso é um diferencial.

Como você disse, é tudo muito novo: quais as expectativas de lidar com uma pesquisa assim, com muitas perguntas, caminhos ainda obscuros, mas com potencial revolucionário?

A própria ressonância magnética é quase um milagre, porque uma tecnologia como essa não é descoberta de um dia para o outro. Primeiro, veio a descoberta do fenômeno fundamental da interação do spin das moléculas ou dos átomos com campos magnéticos externos. Daí então, pensamos: esses átomos estão dentro da gente, então como eles podem responder a essa interação? E a partir disso, colocar uma pessoa dentro de um tubo, jogar um campo magnético e fazer uma imagem de como o tecido responde a nível molecular é algo incrível! E essa tecnologia já está muito além da física fundamental que criou ela. Então, mesmo quando não dá em nada, dá em alguma coisa; mesmo quando a resposta para uma pergunta é negativa, a gente aprende alguma coisa.

Pode ser que um experimento que a gente faça agora não mostre que o ser humano percebe o efeito corpuscular da luz, mas alguma coisa a gente vai aprender, e isso vai nos levar a outra pergunta, e essa outra pergunta pode nos levar a outra resposta. Então toda resposta é interessante, porque ela vai nos levar a diferentes caminhos.

Veja neste infográfico uma linha do tempo mostrando como enxergamos a luz ao longo da história.

Compartilhar


Veja também